Dra. Maria Celia de Abreu (*)
(Dedico este texto aos meus companheiros do Grupo de Estudos e Reflexões sobre o Envelhecimento, do IDEAC – este grupo que desde o início de 2001, todas as terças-feiras pela manhã, se debruça sobre questões do envelhecimento).
APRESENTAÇÃO
Este texto tende a ser mais especulativo do que minhas publicações no blog do Ideac. Para quem está interessado em envelhecimento, ele pode oferecer um embasamento, uma compreensão por assim dizer panorâmica. Nele, recordo como a Psicologia do Desenvolvimento começou a se estruturar como ciência, especialmente na sua parte da Psicologia do Envelhecimento. Reuni algumas informações históricas, e citei alguns nomes significativos. Gostaria que os leitores relembrassem que conhecimento é construído em camadas que se sobrepõem lentamente, ou seja, a psicologia do envelhecimento não se iniciou bruscamente no final do século passado. Talvez os nomes, datas, lugares e fatos que citei (talvez eu tenha abusado de detalhes…) já habitem o acervo de informações dos meus colegas e futuros colegas psicólogos, e outros estudiosos da gerontologia, mas é provável que não seja de um modo organizado.
Com base neste texto, gravei um curso que está disponível on line, no YouTube, no canal O novo da velhice, do Ideac, chamado Conceitos, Preconceitos e Fatos.
PRIMÓRDIOS
Embora até mais ou menos metade do século XX as pesquisas em psicologia do envelhecimento sejam poucas, é interessante fazer um voo panorâmico para conhecer os seus primórdios; estão em ordem cronológica da publicação principal do autor mencionado:
. 1835: Adolphe Quételet (1796-1874), belga, publicou Sur l’homme et le dévéloppement de ses facultés, em 1835. Matemático e astrônomo, estatístico, demógrafo e sociólogo, investigava questões como: taxa de nascimento na população; tendências de mortalidade por idade; diferenças etárias em estatura, peso e força; transformações na moralidade e na inteligência decorrentes do envelhecimento e determinantes dessas mudanças. Foi o primeiro a veicular a ideia de homem médio, depois desenvolvida por Galton (citado a seguir), porque se interessava pelo fenômeno estatístico da probabilidade. Hoje ultrapassada, essa ideia fez surgirem os estudos psicométricos que marcariam a pesquisa e a teorização sobre a inteligência e fundariam a psicometria, nas primeiras décadas do século XX. Seu compromisso em estudar as leis do comportamento ao longo do ciclo de vida se expressa nesta frase: “Primeiro será necessário determinar o período em que memória, imaginação e julgamento começam, e os estágios através dos quais necessariamente passam em sua progressão para a maturidade: aí, tendo estabelecido o ponto máximo, podemos estender nossas buscas para a lei de seu declínio”.
. 1853: Francis Galton (1832-1911), cientista inglês, em 1853 publicou o livro Inquiry into human faculty and its development, afirmando que existem relações entre a duração da juventude e a diferenciação da personalidade. Descreveu mudanças que o organismo sofre na idade avançada e correlacionou-as com mudanças da psicomotricidade, da percepção e dos processos mentais superiores. Ressaltou a necessidade de se pesquisar mudanças sucessivas no mesmo indivíduo, inaugurando o uso do método longitudinal com sujeitos únicos na pesquisa sobre o desenvolvimento. Preocupado com questões sociopsicológicas, teceu considerações sobre as relações entre idade e opiniões de protesto e atitudes críticas em jovens. Pertencente a um alto status social, patrocinou a Exposição Londrina de 1884, que se estendeu por 6 anos e recolheu dados de cerca de dez mil pessoas de todas as idades; esses dados incluem as primeiras descobertas sobre diferenças de idade em relação à velocidade do tempo de reação.
. 1903: Ilya Ilyich Metchnicoff (1845-1916): russo e francês, biólogo, imunologista, sucessor do renomado cientista Pasteur, propôs uma nova disciplina científica, a gerontologia (gero= velho e logia= estudo ou conhecimento). Metchnicoff é considerado o pai da gerontologia. Afirmou que a gerontologia e a tanatologia se tornariam dois importantes ramos da ciência, por causa das modificações que estariam por ocorrer no curso do último período da vida humana.
. 1909: Ignatz Leo Nascher (1863-1944), austríaco e norte-americano, médico, criou o termo geriatria, para denotar o estudo clínico da velhice, assim como pediatria significa o estudo clínico da infância. Sugeriu que existiriam relações entre as circunstâncias sociais e os fenômenos da velhice avançada. Suas ideias deram base para o estudo sobre o envelhecimento como é desenvolvido até hoje.
E A HISTÓRIA CONTINUA…
Entre 1900 e 1940, pouco se pesquisou sobre a vida adulta e a velhice. Foi uma fase durante a qual a psicologia do desenvolvimento expandiu e consolidou noções da psicologia da criança. A psicologia da adolescência floresceu depois dela. A psicologia do desenvolvimento dessa época se apoiava na teoria evolucionista de Darwin (1801-1882; seu famoso livro Origem das Espécies é de 1859), com os princípios de sobrevivência seletiva e progressividade da evolução das espécies – além de continuidade da mudança histórica, multidirecionalidade e criatividade. As teorias de estágios de desenvolvimento psicológico foram influenciadas por essa forma de pensar, mas as fases finais da vida eram desvalorizadas. Dentro da lógica darwiniana, envelhecimento e velhice eram descartados a priori, tanto como processo quanto como fase do desenvolvimento. Não havia uma perspectiva evolutiva para a velhice, e sim pressupostos sobre estagnação do desenvolvimento e sobre o caráter involutivo do envelhecimento. Havia a crença de que o ser humano, graças aos seus genes, já nasce predisposto para algumas realizações; o ambiente tem importância secundária em relação à carga genética de cada ser (e de cada espécie).
O primeiro psicólogo a contradizer essas afirmações foi G. Stanley Hall (citado mais adiante).
A psicologia experimental, a psiquiatria e a psicometria concordavam que o desenvolvimento cessaria após a adolescência. Por isso, ela não devia ser objeto de estudo da psicologia, e sim da geriatria e da gerontologia.
Os primeiros manuais sobre psicologia da velhice (como ocorreu antes com os primeiros manuais sobre psicologia da criança) tinham caráter ateórico, embora seus autores insistissem na necessidade de maior sofisticação metodológica e de operacionalização de termos. A pesquisa em larga escala sobre o envelhecimento só começou nos anos 50. Aí é que se estruturaram os grandes sistemas teóricos, que se mantêm influentes até agora. É nessa época inicial também que se realizou um grande número de pesquisas normativas, cujos dados deram um grande impulso à área.
PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE MÚLTIPLAS VARIÁVEIS
Por que os cientistas se alhearam em relação ao envelhecimento? Sabemos que a ciência – por mais que tente se isentar dessa contaminação – serve aos ideais dominantes do progresso. Durante esse período histórico, percebeu-se a importância de melhorar as condições das primeiras fases da vida humana – pelo menos no Ocidente, a parte do mundo sobre a qual tenho informações. Investia-se no estudo da criança e do adolescente, que representavam um vir a ser, dentro de uma organização sociopolítica onde havia uma valorização dos ganhos e da produtividade. O investimento no velho não revertia nessas vantagens. A escola, porém, para responder às necessidades de uma sociedade cada vez mais urbana e mais complexa, buscava cientifizar suas práticas para aumentar a eficiência dos resultados comportamentais, que se refletiam na economia.
O motivo costumeiramente citado da pequena presença relativa de idosos na população, apesar de válido, não é suficiente para explicar tudo. Porém, não podemos negar que foi principalmente a partir da segunda metade do século XX que a diminuição na mortalidade infantil e materna, junto com o controle de várias doenças, graças aos avanços da medicina, da tecnologia, da urbanização e das condições de trabalho, permitiam tanto menor índice de mortalidade por ocasião do nascimento como também aumento na longevidade, forçando o olhar da sociedade e da economia para esse grupo etário.
O PROGRESSO DA CIÊNCIA NÃO É LINEAR NEM ISENTO DE ENGANOS
Para se constituir como psicologia do envelhecimento, esse campo da ciência teve que reagir contra noções existentes no século XIX, e contra preconceitos da própria ciência do começo do século XX. Vejamos exemplos, além daqueles que o leitor já pode ter extraído do texto até aqui.
Três afirmações predominantes até o início do século XIX, e que hoje não se sustentam mais, graças aos progressos da pesquisa e reflexão, são:
1.A espécie humana já foi perfeita, mas o pecado original provocou sua desgraça, cujo principal sintoma é a morte.
- Em algum lugar distante no mundo existem pessoas que detêm o segredo da imortalidade.
- Existe algures alguma fonte milagrosa, cujas águas restauram o vigor e a juventude perdidos e assim prolongam a vida.
Outro exemplo muito interessante vem das pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos durante a Primeira Guerra. As Forças Armadas norte-americanas precisavam selecionar oficiais, mas não havia critérios válidos, dada a enorme diversidade cultural e educacional das tropas. Resolveram usar testes de inteligência para essa seleção, baseados na ideologia dominante da época, que preconizava:
. a origem genética da inteligência (percebem, caros leitores, a presença de Darwin?);
. o caráter geral da capacidade intelectual (hoje se fala em inteligências múltiplas);
. a possibilidade de medir essa capacidade através de instrumentos psicológicos e confiança nesses resultados; e
. a natureza preditiva (quase infalível) dos resultados dessas provas para o desempenho de funções de comando;
. aceitavam-se as noções estatísticas de homem médio e de distribuição normal de capacidades.
Com o patrocínio da APA (American Psychological Association), sob chefia do psicólogo Yerkes, foram elaborados os testes Army Alpha (para alfabetizados) e Army Beta (para analfabetos) e, com eles, avaliaram a capacidade intelectual de 1.726.966 homens entre 18 e 60 anos. Os resultados, publicados em 1921, revelavam que a inteligência declinava com o envelhecimento; haveria um ponto máximo por volta dos 35 anos, depois um período de estabilidade, e depois um declínio, pouco acelerado primeiro e mais rápido e evidente na velhice avançada. Yerkes advertiu para a provável influência da bagagem cultural, das experiências pessoais e do nível educacional dos sujeitos sobre os resultados, mas preferiu-se ficar com os dados mais evidentes, talvez porque correspondessem melhor às expectativas científicas e sociais da época. Formou-se então um modelo deficitário do desenvolvimento mental na vida adulta, o qual até hoje ainda influencia a vida social, a psicologia e a gerontologia. Preconceitos sociais contra a velhice foram ratificados por essa validação científica (errônea…). Nas décadas seguintes, seus efeitos repercutiriam na formulação de hipóteses e problemas de pesquisa, na interpretação dos resultados e nas opções metodológicas.
O primeiro laboratório de psicologia da América no Norte devotado ao estudo do envelhecimento surge na conceituada Universidade de Stanford; entre 1927 e 1932, aconteceram as primeiras pesquisas experimentais sobre aprendizagem, memória e tempo de reação na velhice; impressionavam pela sua qualidade científica, só que eram caracterizadas pela adoção de procedimentos, ambientes e instrumentos de pesquisa inadequados a idosos (por exemplo, pouco tempo para a realização da tarefa – hoje se sabe que o ritmo das pessoas mais velhas é mais lento – e falta de significado da tarefa para os sujeitos – o que desmotiva o engajamento de pessoas mais velhas); em consequência, corroboravam-se os resultados de Yerkes, enfatizando a incapacidade comportamental do idoso e atribuindo-a a fatores biológicos associados à idade. Só nos anos 70 foi que uma interpretação crítica apontou para essas falhas metodológicas e para uma atitude científica preconceituosa (e da qual não tinham percepção) dos próprios cientistas em relação ao seu objeto de estudo.
Mesmo com tropeços, a Universidade de Stanford, dos Estados Unidos, foi um ninho importante do interesse pelo envelhecimento. Um incentivador dessa nova área de estudos em Stanford foi Lewis Terman, um psicólogo do desenvolvimento da criança, conhecido por ter traduzido do francês o famoso teste de inteligência Binet-Simon, que ao final de sua carreira se interessou pelas consequências para o adulto de ter tido inteligência elevada na infância. Estimulou Lillian Martin, psicóloga, que trabalhou com adultos mais velhos em Stanford até se aposentar em 1929, e depois continuou essa linha de trabalho em San Francisco, até seus 90 anos. Outro nome de Stanford (que depois se transferiu para Yale e mudou sua linha de interesse), foi Walter Miles. Porém, não se tem notícia de que os estudantes de graduação, os cinco doutorandos e um pós-doutorando desse período, em Stanford, que desenvolveram trabalhos acadêmicos na área, tenham conseguido postos docentes relacionados com a psicologia do envelhecimento, e seus nomes não aparecem mais na literatura relacionada com o tema.
Ao final da década de 30 e início dos anos 40 disseminou-se no mundo ocidental um olhar mais amplo sobre o envelhecimento, e mais próximo dos fatos.
A PARTIR DA METADE DO SÉCULO XX
Na segunda metade do século XX, surgem nos Estados Unidos duas vertentes teóricas novas: a de curso da vida (life course) na sociologia e a também denominada de curso da vida (ou curso de vida, ciclo vital, ou ciclo de vida – encontrei todos os termos) (life span) na psicologia; são interligadas e igualmente influentes na gerontologia atual.
A corrente da psicologia do desenvolvimento do ciclo vital (life span), considera a vida como um todo, compreendido desde o nascimento até a morte, passando por fases diversas, e se interessa igualmente, portanto, tanto pela criança como pelo adolescente ou adulto, inclusive o velho, pois todas têm valor igual como objeto da ciência. Preconiza que a trajetória da vida se baseia numa sequência de transições, com modificações físicas, mas minimiza a importância de determinantes correspondentes à idade cronológica, admitindo que, além de biológica, também são demarcadas socialmente, e por características emocionais próprias. Mesmo que se estude um determinado período do desenvolvimento (short-span), ele é colocado numa perspectiva de encadeamento com eventos antecedentes e consequentes.
Esta corrente da psicologia se firma nos Estados Unidos, muito embora seus precursores sejam em boa parte europeus, ou pesquisadores norte-americanos de origem europeia. As próximas linhas comprovam essa informação, mas a conclusão de suas consequências deixo a cargo do leitor.
SOPRANDO AS BRUMAS DO ESQUECIMENTO
Acho que vai ser divertido fazer menção a alguns desses cientistas, que tiveram enorme importância para a psicologia do desenvolvimento e da gerontologia, mas que ficam perdidos nas brumas do passado, mesmo para os estudiosos dessas áreas. Então, aí estão alguns, que ordenei pela ordem cronológica de seus nascimentos, de 1844 a 1902:
Stanley Hall (1844-1924) – um dos fundadores da psicologia da criança, também autor de Adolescence (1904), livro que teve grande repercussão, chamando a atenção para as questões relativas à passagem para a vida adulta, antecipou em 40 anos a tomada de consciência da gerontologia quanto às suas práticas e preconceitos, logo em seguida ao estudo de Yerkes expressou sua discordância no livro Senescence, the last half of life (1922), considerado a primeira grande monografia de um cientista social sobre a velhice, embora não tenha gerado uma reação muito rápida da comunidade acadêmica. Como já foi dito, esse impulso só apareceu na década de 50.
Nesse livro, Stanley Hall criticou a noção de que a adolescência é o reverso da velhice; ou seja, a velhice não se constitui em sucessivas perdas dos ganhos obtidos na adolescência. Propôs que jovens e velhos têm processos de pensamento, motivações e sentimentos com peculiaridades próprias, além do que haveria variações individuais independentes das faixas etárias. Afirmou que na velhice há um aumento dessa variabilidade individual. Enfatizou a relação entre sabedoria e velhice, até então veiculada apenas no âmbito das humanidades, sabedoria essa que se expressa por uma atitude meditativa, uma maior possibilidade de julgamentos imparciais e uma disponibilidade de ensinar aos jovens, a seu ver as marcas distintivas da velhice (antecipando uma importante linha de pesquisa dos anos 80).
Os textos de Stanley Hall despertam algumas reflexões… Eu me pergunto se hoje, cerca de 80 anos depois, com um acelerado progresso científico, já fomos capazes de incorporar essas afirmações em nossas crenças. Quantos não se deprimem ao se perceberem envelhecendo, porque acreditam que vão perder, uma a uma, as características que ganharam durante a adolescência (especialmente as relativas à beleza física, energia corporal, sexualidade, vivacidade intelectual, sociabilidade) e que nada mais vai lhes acontecer? Outra coisa: ainda comparamos o adulto jovem com o adulto velho, usando um mesmo critério; aliás, isso era feito com a criança, comparando-a com o adulto, antes dos progressos da psicologia do desenvolvimento infantil; como ver a criança como um “adulto em miniatura” foi superado, quero crer que estamos em vias de superar a visão do velho como um “jovem emurchecido” …
Nos anos 90, pesquisas sobre cognição na velhice, desenvolvidas nos Estados Unidos e na Alemanha, confirmam a variabilidade interindividual preconizada por Stanley Hall, maior na velhice do que em fases anteriores de vida. Usando só o senso comum, podemos concordar com essa observação: quem já teve a experiência de observar bebês num berçário sabe que, com poucas horas de vida, esses serezinhos já são diferentes, não só pelas características físicas (peso, comprimento, ter ou não cabelos etc.), mas também por comportamentos: há os agitados, os dorminhocos, os reclamões, os conformados etc. Esses bebês vão para suas casas (diferentes), recebem alimentações diferentes, incorporam valores diferentes, têm tipos e graus de instrução diferentes, e vão seguindo cada um seu caminho de experiências, diferente do de todos os outros. Cinquenta anos depois, as diferenças de comportamento entre eles deve ser compreensivelmente bem maior do que quando estavam no berçário… Tivemos necessidade de um Stanley Hall para ter essa verdade apontada.
- G. Jung (1875-1961). Suíço, condição que permitiu que ele ficasse um pouco à parte da turbulência provocada pelo nazismo na Europa. Esta referência a Jung está aqui como um lembrete. Não é possível nestas poucas linhas descrever a importância do fundador da psicologia analítica. Navegou pela psicologia, psiquiatria, literatura, religiões, mitologia, sociologia, antropologia, filosofia, literatura e outras artes, alquimia etc.
Não teve um interesse direto por psicologia do desenvolvimento, mas sistematizou conceitos que nela cabem perfeitamente. Não estava preocupado em formular uma teoria do desenvolvimento; estava preocupado em atender pessoas com problemas de adaptação às mudanças de vida enquanto envelheciam. Para demonstrar que a personalidade se desenvolve durante todo o ciclo de vida, usava sua própria experiência e a dos seus pacientes.
Afirma que, na constituição da personalidade, há polaridades que se fazem presentes durante toda a vida (introversão X extroversão; individual X coletivo; masculino X feminino; juventude X velhice são exemplos dessas polaridades). No começo da vida, as pessoas desenvolvem mais um dos polos; a tarefa de desenvolvimento da meia-idade consiste em adquirir equilíbrio, harmonia e integridade na personalidade. Isso se faz desenvolvendo o lado da polaridade que foi menos desenvolvido na primeira metade da vida. A característica da meia-idade é que nela se passa por uma fase de reavaliação, tanto desses polos como de compromissos tomados anteriormente (como compromissos profissionais e conjugais).
Declarou que os anos da meia-idade foram os mais importantes de sua vida, porque durante eles “decidiu tudo o que era essencial”. Emergiu de uma crise de meia-idade em 1916, com 41 anos. (Aqui a gente constata como épocas diferentes trazem padrões diferentes: um homem do primeiro quartil deste século XXI, de 41 anos, talvez esteja mais próximo de se questionar sobre o fim da sua adolescência do que sobre a meia-idade, como fez Jung no começo do século XX…).
Entre 1916 e 1934 propõe o conceito de individuação, que tem tudo a ver com a psicologia do envelhecimento: a pessoa integra os aspectos conscientes e inconscientes da sua psique, para poder alcançar a totalidade e a autorrealização. É um processo de transformação, obtida através do autoconhecimento.
Jung não foi reconhecido pelos psicólogos do desenvolvimento do ciclo vital; apesar de estarem estabelecidos em continentes diferentes, eram contemporâneos, e havia comunicação entre eles. Algumas prováveis razões são porque:
manifestasse um certo desdém pela atividade lógica e racional;
- tivesse uma intimidade com o pensamento mítico e simbólico;
- estivesse demasiadamente à frente do pensamento de sua época.
A influência da teoria de Jung sobre a psicologia do desenvolvimento começa a ser valorizada depois da década de 70.
Letta S. Hollingworth (1886-1939), psicóloga clínica, educadora e feminista norte americana, conhecida por refutar com dados científicos a propalada superioridade masculina, e tendo o pioneirismo de se opor à teoria darwiniana. Seu orientador do doutorado na Columbia University foi Edward L. Thorndike (falar sobre Thorndike neste texto será desviar demais da proposta inicial, o que é uma pena…). Nesse doutorado, Letta Hollingworth desenvolveu a hipótese de que mulheres, durante o período menstrual, não ficam prejudicadas em sua capacidade intelectual, e não são inferiores aos homens. Foi chamada de teoria da periodicidade funcional. Mais tarde, voltou-se para pesquisas com crianças superdotadas, tendo dado o primeiro curso e escrito o primeiro livro texto sobre essa área da psicologia educacional.
Charlotte Bühler (1893 – 1974). Nasceu, estudou, casou-se (com um seu orientador), teve filhos e faleceu na Alemanha. Ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de Columbia, entre 1924 e 1925. Trabalhou em Viena, entre 1923 e 1938.
Seu marido chegou a ser preso em Viena, em 1938, por causa de suas posições antinazistas, e ela estava na lista, por ser um dos pais dela judeu; mas, em 1939, depois de muitas negociações, ela conseguiu liberá-lo e eles se refugiaram na Noruega. Em 1940, surgiu uma vaga de trabalho para o marido, Karl, em Minnesota, um estado norte-americano, e dez dias depois que eles partiram os nazistas invadiram a Noruega.
Charlotte trabalhou em Minnesota e em Massachussets, com dificuldades de adaptação cultural e de aceitação pelos colegas acadêmicos. Em 1945, o casal se mudou para a Califórnia, e em Los Angeles sua teoria humanista encontrou terreno fértil para se desenvolver. Teve oportunidade de conhecer de perto Carl Rogers, Gordon Allport, de colaborar com Abraham Maslow e passou a admirá-los. No começo dos anos 70 adoeceu e retornou à Alemanha, para ficar mais próxima do filho, e faleceu em Stuttgart.
Em 1933, junto com Fred Massarik, propôs a chamada teoria da autorrealização – que depois vai influenciar o trabalho de Abraham Maslow e Fritz Perls – segundo a qual se deve avaliar o grau de desenvolvimento das pessoas com base de três variáveis: autonomia, autenticidade e coerência entre os valores e a realidade da vida. Essa linha de pesquisa não floresceu porque são variáveis pouco operacionais, difíceis de serem quantificadas. Charlotte Bühler, por sua vez, foi influenciada pelo modelo de autorrealização de Karen Horney, psicanalista neo-freudiana da década de 20, de Berlim, que considera a pessoa como uma Gestalt, não a divide em partes conflitantes (como o id, ego e superego de Freud). Considera a vida humana cheia de propósitos e de sentidos, que se estruturam no self do indivíduo (o que a coloca próxima de Jung e como precursora da psicologia existencial de Rollo May e Viktor Frankl).
Robert J. Havighurst (1900 – 1991). Nascido no estado de Wisconsin, sendo os pais professores universitários na área de Educação, ele se doutorou em química pela Ohio State University, em 1924, e fez um pós-doutorado em Harvard; tem várias publicações em química e em física. Em 1928, decidiu mudar de rumo, e ingressou no campo da experimentação em educação. Em 1940, passou para a psicologia do envelhecimento e para a educação comparada. Aposentou-se em 1983 e faleceu aos 90 anos sendo portador do mal de Alzheimer.
Foi um brilhante representante dos intelectuais do século XX, transitando por vários campos do conhecimento e percorrendo diferentes lugares do mundo. Produziu em Nova York, Chicago e Berkeley. Trabalhou na Nova Zelândia, em Buenos Aires e em São Paulo; aqui colaborou com a implantação do curso de Pedagogia da USP, sendo assistido pelo Professor Joel Martins (psicólogo e educador que teve um papel fundamental na universidade brasileira); também trabalhou com povos nativos norte-americanos. Havighurst fez parte do grupo de psicólogos norte-americanos que consideravam uma combinação de impulso biológico para crescimento com forças do ambiente social, a corrente do ciclo vital, mencionada antes neste texto. Criou o conceito de tarefas de desenvolvimento, onde divide o ciclo da vida em seis períodos, determinados pelas duas variáveis acima:
1º : primeira infância …………………. do nascimento até 5 ou 6 anos
2º : infância intermediária ………….. dos 5 ou 6 até os 12 ou 13 anos
3º : adolescência ……………………….. dos 12 ou 13 até os 18 anos
4º : idade adulta ………………………… dos 18 aos 35 anos
5º : idade adulta intermediária ……. dos 35 aos 60 anos
6º : maturidade …………………………. depois dos 60 anos.
Erik Erikson (1902 – 1994). Nasceu na Alemanha, de origem dinamarquesa, e a parte mais significativa de sua produção intelectual foi feita depois que se estabeleceu nos Estados Unidos. FoiErik Erikson, em 1950, quem reformulou e deu consistência às concepções da corrente do ciclo vital, tratando o desenvolvimento desde a primeira infância até os últimos anos de vida que um ser humano pode alcançar como uma continuidade de etapas. Sobre este homem excepcional, vou só mencionar umas poucas informações, mas se alguém quiser saber mais, sugiro assistir meu curso on line chamado Sobre Erik Erikson, que está postado no YouTube, no canal O novo da velhice, do Ideac.
O jovem Erikson frequentou o Círculo de Viena, tornando-se psicanalista, mas propôs algumas divergências da teoria freudiana original. Se para Freud a personalidade se estrutura na primeira infância, para Erikson a personalidade se desenvolve sempre. Ele também amplia o âmbito da concepção freudiana sobre o desenvolvimento da personalidade, admitindo influências ambientais.
Em 1950, já estabelecido nos Estados Unidos, publica o livro Infância e Sociedade, que é o primeiro em que Erikson propõe oito estágios psicossociais, cada um próprio de uma fase de vida. O indivíduo progride ao longo desses oito estágios psicossociais por crises, pois em cada nova fase ele tem duas possibilidades: ou um desenvolvimento gradual e bem-sucedido do embate entre os elementos presentes em cada fase, com um resultante positivo, ou um prejuízo no desenvolvimento do ciclo vital, que vai agravar futuras crises.
Lembrando que a idade cronológica é pouco valorizada, temos no esquema abaixo uma visualização de cada fase, seus elementos sintônico X distônico, e a resultante bem-sucedida:
1ª : do nascimento até 1 ano … confiança X desconfiança …………………….. esperança
2ª : de 1 a 6 anos ………………… autonomia X vergonha e dúvida ……………….. vontade
3ª : de 6 a 10 anos ………………. iniciativa X culpa ………………. propósito e entusiasmo
4ª : dos 10 aos 14 anos ………… produtividade X inferioridade ……………. competência
5ª : dos 14 aos 20 anos ………… identidade X confusão de papéis ……………. fidelidade
6ª : dos 20 aos 40 anos ………… intimidade X isolamento ……………………………… amor
7ª : dos 40 aos 65 anos ………… generatividade X estagnação ……………………. cuidado
8ª : depois dos 65 anos …… integridade X desesperança e desgosto …………. sabedoria
Numa publicação de 1997, depois do falecimento de Erikson (The Life Cycle Completed) sua esposa e colaboradora, Joan Erikson, faz um acréscimo muito interessante de mais uma fase:
9ª : depois dos 80 ou 90 anos … retrospecto dos oito estágios anteriores.
PARA TERMINAR
Este é um tipo de texto que não tem um fim lógico, natural, necessário. Percorre assuntos cheios de detalhes e digressões, cuja escolha, certamente, foi enviesada por minhas preferências, e pela limitação de minhas informações. Espero que o leitor tenha tido bons momentos recordando coisas que já sabia, que tenha embarcado em algumas provocações, e chegado a algumas conclusões. Eu estarei gratificada se tiver passado a noção de que a psicologia do envelhecimento teve vários teóricos respeitáveis, cujas descobertas e ensinamentos precisamos conhecer, se quisermos atuar com seriedade junto a pessoas mais velhas.
BIBLIOGRAFIA
Birren, James E. e K. Warner Schaie. Handbook of the Psychology of Aging. San Diego, CA, Academic Press, 1977, 4ª ed.
Chinen, Allan B. … E Foram Felizes para Sempre. Contos de Fadas para Adultos. São Paulo, Cultrix, 1993. (Nas págs. 137, 138 e 139 há um resumo das tarefas da meia-idade segundo Jung).
Erikson, Erik H. O Ciclo de Vida Completo. Tr. de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998.
Neri, Anita Liberalesso (Org.). Psicologia do Envelhecimento. Campinas, SP, Papirus, 1995. “Prefácio”, por Paul B. Baltes e Capítulo l: “Psicologia do envelhecimento: uma área emergente”, por Anita Liberalesso Neri.
Pikunas, Justin. Desenvolvimento Humano. São Paulo, McGraw-Hill, 1979.
Staude, J. R. O Desenvolvimento Adulto de C. G. Jung. São Paulo, Cultrix, 1981.
SUMÁRIO – Uma visita às raizes da psicologia do envelhecimento
Apresentação
Primórdios
E a história continua
Pequena digressão sobre múltiplas variáveis
O progresso da ciência não é linear nem isento de enganos
A partir da metade do século XX
Soprando as brumas do esquecimento
Para terminar
Bibliografia
Sumário
(*) Dra. Maria Celia de Abreu é psicóloga, coordenadora do Ideac e autora de vários livros, entre eles, “Velhice uma nova paisagem”
(Foto Jader Andrade)
Quanto fôlego, quanto conhecimento, quanta dedicação e devoção ao aprendizado! Recordar é viver, então vivo momentos maravilhosos com essa história! Obrigado Maria Célia pelo seu empenho em nos manter aprendizes sempre! Amei!
Olá Tatiana, seu retorno é muito importante. Essa pesquisa da Dra. Maria Célia está excelente. Abraços
É um privilégio ter acesso a esse conteúdo sintetizado de modo tão didático! Muito obrigada!
Obrigado pelo retorno, realmente ela se esmerou na pesquisa e no texto. Uma aula essencial. Abraços
Maravilhosa!
Não é um texto é um curso inteiro!
Fiquei recordando texto que já li e outros que ainda não havia lido.
Muito obrigado pelo curso
Verdade, é mesmo um curso que Dra. Maria Celia oferece gratuitamente para quem se interessa pelo tema. Abraços