Lucy de Araújo (*)
Revisão de Texto: Ivani Cardoso e Maria Celia de Abreu
São Paulo, maio de 2022.
Hoje acordei cedo e decidi permanecer na cama. Com 81 anos de existência, não me faltam lembranças para remoer… Mas só fico com as boas: as aflitivas, mando embora!
Era dezembro de 1991. Eu tinha me aposentado há um ou dois anos – do contrário, esse episódio não teria acontecido; eu não teria podido atender ao pedido de Beatriz, minha cunhada: “Lucy, as crianças foram convidadas para passar uma semana no sítio do meu irmão José Luiz, será quer você pode acompanhá-las?” No caso, “as crianças” significavam meus três sobrinhos: Fernando, João e Francisco, então com seus onze e doze anos.
Foi o mesmo que perguntar para o coelho da velha fábula se ele queria ser jogado no espinheiro!!!
No domingo seguinte, lá estavam os três, e mais os três filhos de José Luiz: José Luiz, o bebê Álvaro e Maria Isabel. A responsabilidade por eles seria compartilhada entre Sandra, esposa de José Luiz, e eu.
Passamos uma semana inesquecível. O sítio era tudo de bom, casa térrea, simples e espaçosa, acolhedora e confortável. Eu me encantava com sua varanda, decorada com um enorme pé de primavera coberto de flores. É estranho saber que isso foi há trinta anos, pois tudo está muito nítido em minha memória.
Nossa primeira ação foi produzir um churrasco, num sítio que não tinha churrasqueira; foi uma oportunidade de exibirmos nossa criatividade, oras. Meu pai, nordestino de Caicó, tinha nos preparado uma carne de sol para levarmos. Fogo aceso, grelha aquecendo… e uma gata prenhe surge e rouba uma lapa de nossa carne! Só que ela não contava com minha vigilância atenta: rápida como um raio, agarrei de volta nosso pedaço de almoço. Foi a primeira gargalhada da turminha!
João desconsiderou o ato criminoso, e gostou da gata; ela desconsiderou a frustração de perder o banquete, e se deixou conquistar com carinhos; em breve, onde ele estava, lá estava a gata. Numa certa manhã, quando todas as crianças – e a gata – estavam reunidas num quarto, Sandra e eu corremos às carreiras para lá, as crianças tinham se posto a gritar! Era porque a gata estava iniciando um trabalho de parto. Sandra deu um berro ainda mais forte: “Logo na cama do José Luiz!” Quem salvou a situação foi Juvenal, o caseiro, que rapidamente entrou em ação: carregou a gata para um barracão onde já tinha preparado uma caminha para que ela pudesse parir seus gatinhos em segurança. Quanta emoção! A partir daí, o serviço da gata passou a ser cuidar dos filhotes, e João perdeu sua companheira.
Os dias ensolarados convidavam a brincar na piscina, com muitas risadas, jogo de bola, pulos e piruetas. Como é bom ser criança, tudo diverte. Nós duas, adultas, nos deliciávamos com a presença das crianças e sua descontração.
Exploramos o sítio andando a pé. Conhecemos as enormes castanheiras e seus frutos redondos e espinhosos que caem no chão; pisando neles, se abriam, e então descobrimos como nascem as castanhas portuguesas!
Visitamos as baias dos cavalos, lindos, caprichosamente tratados pelo Juvenal; havia um castanho com manchas brancas, de longa cauda, outro cinza… não esqueci até hoje.
Fizemos um passeio até a cidade de Tambaú. Em uma charrete e dois cavalos devidamente arreados, lá fomos nós pela estrada! Os maiores se revezavam nos dois cavalos, e como sabiam trotar! Sandra, pilotando a charrete toda garbosa, conduzindo a mim e aos menores com segurança! Chegamos na pequena cidade, demos uma volta, tomamos sorvete e voltamos para o sítio felizes por mais uma aventura.
O sítio possuía um lago bonito, próprio para pescaria, que brilhava com a luz do sol. Para lá fomos, em roupa de banho, armados de varas e anzóis. Eu me sentei na plataforma à beira do lago, para preparar as minhocas, e a meninada se pôs a pular dali para o lago, mergulhando e retornando, e o entusiasmo foi tamanho que ela se inclinou e fomos todos parar dentro da água, entre gritos e gargalhadas. Eu tinha há pouco tirado o gesso de uma mão fraturada, ainda estava cheia de cuidados… ah! como riram da Má tentando nadar com uma mão para cima! Será que pescamos alguma coisa? Não me lembro…
Uma explicação rápida: Fernando, o meu sobrinho mais velho, é meu afilhado; foi ele que, ainda bebê, me apelidou de Ma, dada a dificuldade de pronunciar “madrinha”… e desde então sou Ma para os mais jovens da família.
Uma tarde saímos em comitiva com o plano de caminhar pela mata até a cachoeira, Juvenal sendo nosso guia. Só que eu tinha a opinião de que estava se preparando uma bela chuva, então eu ia carregando uma sacola com agasalhos para as crianças e mais um guarda-chuva. Alvinho só tinha dois anos, Sandra precisava carregá-lo na maior parte do tempo. Assim, nossa turminha foi ganhando distância de nós duas. Sem vê-los, ouvindo cada vez mais ao longe as risadas e o falatório, fui ficando nervosa, muito embora Sandra procurasse me acalmar dizendo que Juvenal era muito responsável e conhecia bem a região. Descemos morro abaixo e quando chegamos no riacho eu entrei nele de tênis, sacola e guarda-chuva. Lá pelas tantas, larguei sobre uma pedra o que carregava e me apressei o mais que aquela caminhada de tênis ensopado permitia. Sandra vinha atrás, com Alvinho, rindo muito de mim, mas eu não achava graça nenhuma. Enfim chegamos no objetivo: a meninada toda debaixo da cachoeira DE ROUPA E TUDO! Como riam e se divertiam! Eu assistindo… me sentindo nem sei como…
Voltamos para casa, felizes, cansados e molhados, no final do dia. Bem que sentimos um pouco de frio. Mas, que importância isso tinha, naquela altura dos acontecimentos?… Não choveu… e eu de guarda-chuva no meio do mato, pode? Banho quente para todos, porque a festa continuava.
Farra e atividades não faltaram. Carinho e comida boa, feita na hora, também não. Alegria, brincadeiras saudáveis, contato com a natureza, aconchego da família, inesquecíveis! Só tenho a agradecer.
(*) Lucy de Araújo é artista plástica, voluntária da Associação Brasil Parkinson, onde fundou a Oficina de Artes Adelaide Araújo; faz parte do Grupo de Estudos e Reflexões sobre o Envelhecimento, do Ideac.