(*) Marli Corrales Henriques
O mundo digital vem ocupando cada vez mais espaço no cotidiano das pessoas, independente de cultura ou classe social. No Brasil, este dado não é diferente, está em segundo lugar no ranking de horas na internet e terceiro em uso de redes sociais, dados de um estudo da Hootsuite e WeAreSocial.
Diante deste cenário, nos deparamos com a pergunta: “_ como podemos pensar as gerações que nasceram e nascem no universo digital?”
No consultório, esta pergunta tem sido feita por muitos pais que não sabem como lidar com o excesso de telas de seus filhos. Pais aflitos, com muitas dúvidas, angustiados, percebendo que a dinâmica de uso, está fora do esperado e de controle. Como lidar com esse comportamento que após a pandemia tomou um lugar de destaque na vida de crianças, adolescentes e pais?
Estas angústias têm tomado, cada vez mais, um espaço nas discussões de leigos, estudiosos das mídias, professores, educadores, pesquisadores, neurocientistas e outros. Todos, com uma preocupação central: Quais as interferências e transformações que estas tecnologias trarão para as pessoas, e em especial para as crianças e adolescentes?
Ao mergulhar em autores que discutem as dúvidas, eu me deparei com um autor que pesquisou sobre o impacto do mundo digital para a inteligência da nova geração. Miguel Desmurget, neurocientista que após ter trabalhado em prestigiadas universidades norte americanas, dirige o Instituto de Ciências Cognitivas Marc Jeannerod, da Universidade de Lion. Ele aponta para dados de sua pesquisa que trazem o impacto das telas na saúde física e metal de nossas crianças e adolescentes.
Para o autor e pesquisador, os dispositivos digitais estão afetando seriamente o desenvolvimento neural de crianças e jovens, colocando em risco seu futuro e desenvolvimento. Segundo ele, os jovens hoje têm inteligência menor que a de seus pais. Tais dados foram coletados através de testes de QI, padronizado. É importante salientar que as capacidades cognitivas medidas por esses testes padronizados estão ligadas a fatores genéticos, socioeconômicos e culturais, alémde estímulos ambientais, entre outros.
Tenho observado a mesma questão em meu consultório, não da forma comparativa citada pelo autor (pais e filhos), mas um rebaixamento, bastante significativo, nas provas do teste de Q.I (quociente de inteligência), ligadas às provas de “Compreensão Verbal”. Os dados, ainda que coletados em pequena amostra, comparados à pesquisa do Dr. Miguel, chamaram minha atenção, uma luz de alerta apareceu e várias questões tomaram corpo:
Quais as causas destes dados?
Seria, apenas a pandemia responsável por tal rebaixamento?
As perdas de convívio, a ausência da escola, o afastamento de familiares e amigos, estão determinando ou contribuindo para a questão?
Muitas outras poderão ser feitas…
Não sabemos ainda, em sua plenitude, as consequências das tecnologias digitais sobre o cérebro. Por enquanto, estudos mostram que os efeitos a médio e longo prazo do uso constante e prolongado não são bons para o desenvolvimento cognitivo de crianças, adolescentes e adultos.
O acesso à informação é o que na história do desenvolvimento humano trazia notoriedade. Hoje, no entanto, temos um número infinito de informações na palma de nossas mãos, é mais do que todas as informações que já se imaginou ter. Somos bombardeados com um fluxo enorme, mas com poucas possibilidades de lidarmos bem com isso.
É sabido, que nós só conseguimos recordar o que faz sentido do ponto de vista emocional. A grande quantidade de engajamento tecnológico faz com que se tenha dificuldade em transformar a informação em conhecimento. Isto torna as novas gerações pouco treinadas e motivadas para exercícios que envolvam a reflexão, abalando assim a criatividade. É preciso que a criança e o jovem tenham momentos para imaginar, divagar, refletir, pensar. Muito pouco adianta esta quantidade de informação que chega, porque ela não será aproveitada, não se transformará em conhecimento.
A saída, quando estamos mergulhados no mundo digital, é voltarmos à superfície, ou seja, educar a consciência. Criou-se a necessidade de estimular as crianças o tempo todo, não deixando tempo para o ócio e para o brincar livremente. As telas, passaram a ter um papel importante neste excesso de estimulação. É comum ver crianças nas telas mesmo com babás, amiguinhos ou calmante, que distraem e deixam os pais livres.
Outro aspecto paralelo e muito grave, diz respeito ao papel dos pais no mundo contemporâneo. Eles deixaram de exercer seu papel fundamental para o desenvolvimento e amadurecimento dos filhos. Educar é dar ferramentas necessárias para o amadurecimento. Vejo uma grande dificuldade em enfrentar a frustração dos filhos, pais se colocam na tarefa de não frustrar, precisam ser amigos, pais legais que não colocam nenhum limite. Esse não é, certamente, o papel dos pais na formação de seus filhos.
Leo Fraiman, psicólogo e educador, fala do real papel dos pais, mostrando que eles não têm o dever de ser legais, mas de ser leais. Formando cidadãos a aprenderem que há leis e que devemos segui-las, não dando um jogo ou deixando assistir a um filme que a idade da criança não permite; leal à saúde, mantendo horários para dormir e em que as telas deverão ser desligadas; leal à aprendizagem e dar importância a ela.
Outro autor, Nicholas G Carr, mestre em língua e literatura americana, formado pela Universidade de Harvard, escreveu “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”. Primeiramente faz um ensaio sobre a história da literatura no mundo ocidental, permitindo ao leitor viajar pela história da escrita. Discute com propriedade os assuntos relacionados a memória e ao cérebro.
Segundo o autor, “a divisão da atenção exigida pela multimídia, estressa ainda mais nossas capacidades cognitivas, diminuindo a aprendizagem e enfraquecendo a compreensão. Quando se trata de suprir a mente com a matéria prima do pensamento, mais pode ser menos” (p.180). E continua: “a capacidade de saber em profundidade um assunto e construir dentro das nossas próprias mentes o conjunto rico e peculiar de conexões que dão origem a uma inteligência singular (p.198)”.
Transcrevo outra passagem: “A ironia do esforço da Google para trazer maior eficiência à leitura é que ele solapa o tipo de eficiência muito diferente que a tecnologia do livro trouxe à literatura -, e às nossas mentes – em primeiro lugar. Ao nos libertar da luta para decodificar o texto rapidamente – lemos, se é que lemos, mais rápido do que nunca -, mas não mais somos levados a uma compreensão profunda, construída pessoalmente, das conexões do texto. Em vez disso, apressados para ir adiante até um outro pedaço de informação relacionada, e outra e outra. O garimpo superficial do “conteúdo relevante” substitui a lenta escavação do significado”. (p. 227).
Como diz Carr: “É difícil resistir às seduções das tecnologias, e na nossa era de informação instantânea, os benefícios da velocidade e da eficiência parecem ser genuínos, e seu desejo, indiscutível.” (p. 304)
Ampliando o foco…
Não vamos demonizar as tecnologias, a internet e as redes sociais, pois elas nos permitiram galgar espaços nunca imaginados, com rapidez e eficiência. Foram incorporadas a várias profissões, atividades e na educação passaram a ter um papel fundamental. Elas nos permitiram entrar em contato com informações, a nos comunicar de forma mais rápida. Os avanços foram imensos. Porém, o que gostaria de discutir aqui, está ligado à substituição de processos de aprendizagem até então muito eficientes, como a leitura e a escrita, pelas tecnologias de forma intensa e muitas vezes única.
Carr, G. Carr, “A Geração Superficial: O que a Internet Está Fazendo Com os Nossos Cérebros – Saraiva
Desmurget, Miguel, “A fábrica de cretino digital” (Por que pela primeira vez, filhos têm QI inferior ao dos pais) -Vestígio.
Fraiman, Leo, “A Síndrome do Imperador” (Pais empoderados educam melhor) – Autêntica FTD
(*) Marli Corrales Henriques é psicóloga infantil e integrante do Grupo de Reflexões do Ideac.
foto: Pixabay