Suely Tonarque (*)
Repetir o mesmo gesto, nos torna habitantes do passado, reféns do conhecido, pronto e acabado. Um clone não apresenta surpresas, reproduz o que fazemos, embora útil nas atividades dos homens. É a criação deste clone, que denuncia a evolução dos humanos. Isto quer dizer, que é a criatividade que nos põe para frente.
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido,
Tempo, tempo, tempo, tempo.
(“Oração ao Tempo” – Caetano Veloso)
O tempo interno de cada um de nós é diferente, para alguns refletir, processar, sentir, intuir, aprender um ofício demora três dias, três meses, três anos; para outros, três semanas, três horas, três minutos. Assim, marcam e pontuam nossas diferenças individuais, nossos relacionamentos familiares, coletivos, sociais e ambientais. O tempo é senhor desses processos e é a ele que Caetano faz seu pedido. Será que dá para sintetizar todos estes tempos? Será que os encontros são antes de tudo, encontros de tempos?
Tenho duas irmãs que admiro e amo muito. Sonia Regina Tonarque Beraldo, que tem três filhos, quatro netos e duas netas é minha irmã mais velha. Em termos de família, é maravilhosa, boa dona de casa, sabe receber, grande anfitriã. Mãe maravilhosa, no limite correto do apegar/desapegar. Quem, conhecendo-a, não gostaria de ser seu filho?
Siuza Maria Tonarque, é a irmã mais nova, que cria, inventa, pensa e concretiza as peças de roupas e os artesanatos que elaboramos. (Su-siuzatorenaque esiusatonarque – instagram). Esta irmã é joalheira, designer têxtil, trança os fios que criam nuvens de vestir e constelações de usar, percebo-a como uma artista autoral, semeia uma arte que jorra, borbulha e incendeia de luz, tudo o que produz, ou seja, é um ser de Natureza Criativa. Criar pulseiras de madeira, colares de fios de aço, brincos de perolas, são reverências ao Criador Maior. Criar e recriar, reinventar e transformar vestidos, calças, blusas, saias, coletes e togas é sua arte mais assimétrica; compor um vestido de tecido de malha, com detalhes em tafetá é sua habilidade nata. Podemos marcar, como se fazia outrora, com ferro quente na testa do boi a legitimidade do dono: esta artesania é dela.
Alguns pensadores já nos ensinavam: “tudo que gostamos já é nossa criação”, insinuando que a partir do momento que me apaixono por um livro, por uma joia, por um sapato, por um vestido, e o transformo com a espreita do meu olhar, esta invenção já é minha criação.
Neste tempo de pandemia que estamos vivendo, como prestadoras de serviço, fechamos a loja da rua Morato Coelho, voltei para minha casa original no Brooklin. Siuza, que já estava morando em Aiuruoca (MG), lá permanece até hoje. Um espaço grande de desafios novos, criações novas. Foi então, quando pesquisou uma técnica milenar (filtragem molhada), através da fricção com água, sabão e feltragem, modelando diversos produtos como bolsas, brinquedos, vestuários e outros itens inusitados, que descobriu a joia de sua criação.
Siuza está atualmente tentando desenvolver suas novas criações no segmento de feltragem. Já fez peças maravilhosas com cores vibrantes que irradiam beleza e originalidade. A feltragem seca também é outra técnica com agulha, lã e seda.
Ela conta com duas funcionárias que a auxiliam nesta nova pesquisa, pois cada peça autoral demora a ser concluída. É muito exigente e fascinante adentrar no caminho da criação, com produção, dedicação e encantamento.
A técnica de feltragem é milenar e acreditamos que teria origem na Asia (Mongólia, na Turquia), sendo que os vestígios arqueológicos mais antigos encontrados datam de 600 a.C.. No entanto, há quem acredite que os homens já conheciam a fabricação do feltro muito antes. Desde esta época o feltro é então utilizado para vestuário, tapetes, mantas e diversos tipos de artigos de utilidades até mesmo tendas, que ainda hoje são alojamentos de povos nômades asiáticos.
Conta-se que na lenda bíblica da Arca de Noé encontravam-se, entre outros animais, ovelhas em um espaço muito pequeno. Devido ao calor, a ação da urina (a lã filtra melhor em área alcalina) e das patadas dos outros bichos, as ovelhas perdiam a lã, Após o desembarque, um grosso tapete cobria o chão da arca.
Estes escritos narram uma pequena introdução sobre o processo de feltragem. Documenta-se uma janela que se abre neste mundo de criação artesanal, com cores e várias outras opções de fio, para o novo, um ato divino, onde a tecelã/artesã Siuza Tonarque se joga, se lambuza, se permite criar produto novo, original, onde simultaneamente desenvolve e divulga a própria técnica, e a paixão que arde em seu interior.
A técnica da feltragem nos oferece a oportunidade de licenciar a aproximação mais profunda do tempo presente, concretizando um sonho, como sussurra Caetano através do tempo passado, tornando o tempo da criação uma sombra e uma luz, ambos enfeitando o cotidiano no vestir.
(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga, especialista e moda no envelhecer e integrante do Grupo de Reflexões do Ideac
Parabéns querida Suely
Escrita rica e gostosa de ler
Viva as irmãs arteiras e artistas
Obrigada Suely. Texto esclarecedor! beijo
Parabéns, Suely! Também tenho duas irmãos, a mais velha, com quem aprendi muito na infância e a mais nova que era o meu brinquedo: banhar, pentear, vestir, cantar, brinca …. boas lembranças! Gratidão Suely!
Que delícia sua escrita parece que estamos tomando café…
Parabéns às artérias…kk às Artistas. B
Quanta informação em uma prosa poética. Parabéns Suely e Siuza
Parabéns! Lindo texto, feito com o coração!