“Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa.
Sou sua paisagem, sua retorta alquímica e, para sua alegria, seus dois olhos. Mas esta letra é minha.”
(Adélia Prado – livro Oráculos de Maio)
Por Suely Tonarque (*)
A leitura do cartaz, a leitura do painel do ônibus indicando o percurso de chegada na casa da filha, dos netos, do namorado deixa o passageiro tranquilo, seguro e nas próprias mãos – vou lendo as informações e sei como voltar para minha casa, é fácil e quase tudo é possível quando tenho acesso ao caminho das letras abrindo frestas nesta experiência de viver com discernimento das letras, caçar as palavras, uni-las e construir uma frase com caçar – “Vou à caça de um animal”.
O mesmo som com significado diferente, cassar – “Seu direito enquanto presidente foi cassado” – não pode mais exercer o cargo.
Desvendar, entrar no mundo da compreensão das palavras, das frases, do texto é se aproximar um pouco da alma e dormir com gosto do querer mais, com gosto de se situar na família e no mundo – eu vou e sei voltar.
No romance “A Palavra que Resta” do autor Stênio Gardel, na página 18: “- Onde é a aula do idoso? Uma senhora que varria o pátio indicou o caminho. Na sala, sentou numa cadeira próxima a porta. Podia desistir, sairia devagar, sem ninguém ver, antes de começar a aula”.
Resolve ficar, pois o encontro mais interessante – as mãos, o lápis e a folha de papel “daria a oportunidade de ler a carta do seu namorado mesmo após 40 anos, com o papel amarelado, quase se desfazendo, os escritos se apagando. Guardou a carta de amor, foi aprender a ler e escrever e entrar no mundo secreto da escrita do seu coração e do outro.
Stenio Gardel nos apresenta neste romance a amplitude do sofrimento da exclusão – do negro, do pobre, do feio, do analfabeto, do velho, do deficiente. Através da sua escrita e a compreensão desta escrita vamos nos humanizando e nos aproximando da essência do humano.
No ano de 2004 resolvi fazer um trabalho de voluntária, ação essa que durou 3 anos. Todas as terças-feiras saía da loja onde era funcionária e ia para o EJA do Colégio Vera Cruz – professora de alfabetização de adultos. Foi uma experiência de chegar mais próxima da realidade do não saber ler e nem escrever, com todos os alunos acima de 50 anos. Acredito que logo de início tínhamos coisas em comum: trabalhar o dia todo e de noite lidar com os desafios do saber e descortinar o enigma das escritas, escritas que depois juntos elaboramos nossas autobiografias. Às vezes antes de entrar na sala de aula, tínhamos o encontro na cantina do colégio, repartíamos a mesma mesinha todos cansados, porém todos com desejo de troca.
Outra coisa em comum era a nossa idade (kronos), todos acima de 50 anos. E a terceira coisa em comum, a experiência de ser professora de adultos pela primeira vez e os alunos também pela primeira vez terem tido a coragem de sentar em um banco escolar.
Várias coisas em comum facilitaram a vida do grupo de alunos e da professora. Essa vivência é uma riqueza que carrego, pois saí do meu analfabetismo e entrei em contato com os saberes do pedreiro, do encanador, da cozinheira, mecânico, azulejista, costureira, vigia e pintor. Além de conhecer através dos relatos os locais de origem, Salvador, São Luiz, Belo Horizonte, João Pessoa, Fortaleza, Canto de Buriti (Piauí), São Paulo, Mata Grande (Alagoas), Berzeiro (Paraíba), Jaicós (Piauí). No final do ano, cada aluno escreveu sua autobiografia e fizemos um livro. Houve uma festinha de comemoração com autógrafos e dedicatórias.
Todo esse processo de alfabetização de adultos era baseado nas ideias do educador Paulo Freire em defesa da educação como um ato político, um ato libertador, com direitos a educação, moradia e saúde.
A importância do educador Paulo Freire (hoje repudiado pela direita brasileira, mas admirado pelo mundo todo), não está na metodologia de alfabetização de adultos. Na verdade é uma decorrência das descobertas da psicogênese de Emília Ferreiro, de que aprender a ler e escrever advém, antes de tudo, de um desejo de aprender para. Temos de ter uma motivação (sempre interna) para fazê-lo: para poder ser cidadão, votar, seja para ler uma carta guardada 40 anos de um amor velado…
“Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo.
Nossa fé nos homens, na criação de um mundo em que seja menos difícil amar.”
(Paulo Freire, livro Pedagogia do Oprimido, página 218)
No poema de Adélia Prado, no final ela escreve: “mas está letra é minha”. Sim, e com esta minha letra, com esforço e dedicação que me permito as minhas escolhas, mudar no meio do trajeto e voltar, ou também seguir em frente descobrindo as verdades escritas na estrada da vida.
Não ser analfabeta é um aconchego a si mesmo é olhar para sua carteira de identidade (aquela verdinha) e reconhecer-se como pessoa e não apenas como um carimbo do seu dedo, é um abraçar-se e sentir o perfume de si.
É a amplitude de se reconhecer como pessoa, entrar no mundo com dignidade e esperança, é possível o diálogo, o encontro, o aprender e o ensinar, a troca de saberes e de afeto.
Pesquisa realizada em São Paulo pela PUC-SP sobre escolaridade mostra que um pouco mais da metade (51,13%) da população idosa da cidade de São Paulo não chega a completar o Ensino Médio. Desse grupo, a maior parte (38,67%) parou de estudar no Ensino Fundamental 1 ou 2, ou seja, nem ingressou no Ensino Médio. (Equipe Projeto PUC-SP, ano 2021)
Os dados desta pesquisa mostram quantos brasileiros e brasileiras são cegos para a informação, para o discurso escrito, impedidos da participação em um mundo civilizado. Em um país com desigualdades sociais tão gritantes, eles só aparecem na estatística da exclusão.
(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga e especialista em moda no envelhecer