Dra. Maria Celia de Abreu (*)
Denominei um dos meus cursos online, postado no YouTube, de “Conceitos, Preconceitos e Fatos” – que gira em torno do envelhecimento, a principal área de interesse do Ideac. Tenho tido notícias de que ele tem rendido discussões e reflexões muito ricas, o que certamente me deixa feliz, pois esse é o objetivo, mas fui surpreendida por um questionamento em torno do título, especificamente da primeira palavra do título: conceitos. Ocupou horas de conversas do Grupo de Estudos e Reflexões sobre o Envelhecimento do Ideac!
Esse questionamento inesperado foi a provocação que me levou a escrever o texto a seguir. Precisei recorrer a conhecimentos que estavam armazenados há muito tempo em minha memória, sendo a referência principal o livro editado em 1965 nos Estados Unidos, traduzido para o português em 1971, de Robert M. Gagné, Como se realiza a aprendizagem. Esse autor organiza nossas ideias sobre tipos de aprendizagem, um processo complexo e multifacetado, numa escala crescente de abstração cognitiva, indicando as melhores condições educacionais para se aprender cada um desses oito tipos. A aprendizagem de conceitos é um deles. Dos anos 60 para cá outros textos foram produzidos, mas o livro do Gagné, a meu modo de ver, continua válido e esclarecedor.
Há formas de aprendizagem menos complexas do que a de conceitos, muito bem esclarecidas pelo modelo Estímulo-Resposta. São as respostas condicionadas, seja a um estímulo, seja a uma combinação de estímulos; as aprendizagens de cadeias de estímulo-resposta, incluindo as associações verbais; e as aprendizagens de discriminações múltiplas. Já outros tipos de aprendizagem são mais complexos e abstratos do que a de conceitos: aprendizagem de princípios, e de solução de problemas, cujo formato mais complexo é a criatividade.
Formar conceitos pode ser descrito como a capacidade de agrupar objetos, pessoas ou fatos em uma classe, e reagir a eles como um todo. Para isso, a pessoa classifica certos objetos (ou pessoas, ou fatos, ou lugares, ou ações, ou sentimentos) em função de uma propriedade comum a eles. Precisa discriminar propriedades e abstrair do concreto.
Para formar um conceito, precisamos fazer discriminações múltiplas. Gagné dá o exemplo do conceito de “ângulo” – supõe discriminá-lo de “linha”, “superfície”, “vértice”, “página de papel” e talvez uns tantos outros conceitos. Acho que a formação do conceito de “cachorro” é outro exemplo esclarecedor. Quem já acompanhou o desenvolvimento de uma criança sabe que, a princípio, ela aponta para qualquer animal que tenha patas e diz “au-au”; quem é capaz de não se enternecer com esse “au-au” indiscriminado? Porém, deixamos de lado nosso encantamento, priorizamos a tarefa de ensinar para a criança o que é assumido como correto, e vamos repetindo para a criança que este sim é um “au-au”, mas aquele não, aquele é um “miau”, um “piu-piu” … ou sons mais ameaçadores… até que um dia ela afinal fica sabendo o que é um “au-au”. Ela não erra mais – ela formou o conceito. E já não diz “au-au”, diz “cachorro”.
A linguagem facilita muito a formação de um conceito, embora não seja estritamente necessária. O que é preciso é que se parta de situações concretas para se fazer as abstrações, pois é assim que se evita que seja formada uma aprendizagem por associação verbal. A vivência com situações concretas permite que se dê ao conceito um significado operacional. Por exemplo, se repito verbalmente a definição de “ângulo”, mas não sou capaz de encontrar ângulos em um livro, um telhado, uma piscina, um quebra-cabeças, eu só “papagueio” o conceito, mas não sou capaz de abstrair seu significado para aplicá-lo em ambientes onde ele existe, mas está confundido com elementos desse ambiente.
Os educadores conhecem bem a eficácia da teoria do “aprender fazendo”, e os que são familiarizados com Paulo Freire sabem que a educação – eu me atrevo a acrescentar que na base dessa educação estão os conceitos – é um processo que liberta.
No “Conceitos, Preconceitos e Fatos” insisto logo na primeira aula em chamar a atenção para os termos “velho”, “velhice” e “envelhecimento” – e podemos aqui acrescentar “longevidade”. Indicam categorias diversas; são conceitos diversos. Usá-los indiferentemente é fazer a mesma coisa que a criança que chama o “piu-piu” de “au-au”. Para nós, que estudamos o envelhecimento, isso seria uma generalização… imperdoável!
Um conceito, mesmo correto, pode ir sendo refinado, na medida em que novas experiências vão sendo adicionadas. Nossa criança descobre que há muitos tipos de “au-au” … pastores, goldens, chiuauas, caramelos, pequineses e por aí afora; nessa altura, provavelmente a linguagem dela já alcançou um ponto de desenvolvimento bem mais sofisticado e “au-au” é uma palavra que fica para trás. Aprendizagem de conceitos é dinâmica.
Quando mandamos nossas crianças para a escola, esperamos que seja para que ela aprenda, da forma mais correta e completa possível, os conceitos mais importantes para viver em sociedade, de modo a mais adiante se tornar um cidadão produtivo, com a base necessária para resolver problemas e para ser criativo. (A educadora Maria Lucia Di Giovanni, nas manhãs de discussão sobre o envelhecimento, no Ideac, sempre nos relembra dessa importância do ensino formal). Os saberes de nossa sociedade são tantos, e tão complexos, que precisamos da intermediação da escola para selecionar quais são as primeiras aprendizagens que são imprescindíveis – embora esse processo já tenha se iniciado antes da criança ir para a escola. A convivência anterior, idealmente na família, já traz um início de formação de conceitos. (A psicóloga Tatiana Wernikoff acha importante não esquecermos que crianças muito novas já são capazes de abstrair da realidade).
Já ouvi quem afirmou que não gosta de velhos, porque velho cheira mal. E sabe disso porque o avô era velho e cheirava mal. Também já ouvi quem adora estudar envelhecimento porque conviveu com o avô, e ele era um ser humano extraordinário. Essas pessoas estão fazendo generalizações a partir de experiências insuficientes. Nenhuma delas teve convivência com um número suficiente de velhos para poder tirar conclusões para uma classe inteira de pessoas. São generalizações indevidas. Seus conceitos são pobres. Conceitos pobres, indevidos, conduzem a escolhas de vida pobres e indevidas. Não preenchem uma das grandes vantagens de podermos formar conceitos: eles são libertadores.
São os conceitos que nos livram dos detalhes dispensáveis; aliás, quem leu Aristóteles entende que essência e acidentes são uma analogia muito próxima do que estamos tentando deslindar neste texto (como sempre enfatiza o psicólogo Antonio Carlos Martinelli nas reuniões de estudos do Ideac). Os conceitos nos libertam. Podemos reagir a uma classe, em vez de reagir a objetos um a um. Quando você abstrai e classifica, você se localiza no mundo; consegue perceber que há uma organização nele, que você não está no caos. Podemos nos comunicar com outros seres humanos! Como seria complicada uma comunicação sem abstrações e sem classificações, reagindo a objetos individualmente, estímulo a estímulo – será que seria possível?
Até aqui, compartilhei coisas que sei sobre a aprendizagem de conceitos e sobre essa ser uma aprendizagem importante. Sem ela, não se faz ciência, não se constrói conhecimento. Foi a razão da palavra abrir o título do meu curso “Conceitos, preconceitos e fatos”, planejado para quem quer se aprofundar no conhecimento do envelhecimento.
Porém, não sei (ainda!) responder à questão do que acontece no processo de uma demência cognitiva: será que a pessoa percorre um caminho inverso, vai perdendo a capacidade de fazer generalizações, de reagir a classes de objetos (ou fatos, ou pessoas) organizadas por determinada característica? Qual a consequência, no cotidiano, de como é o sistema conceitual da pessoa com demência, e de quem convive com ela, ou cuida dela? A Psicologia pesquisa a “desaprendizagem”, como faz com a “aprendizagem”? Essa é uma área só da Neuropsicologia, e a Psicologia de Aprendizagem fica de fora? São perguntas trazidas pelo geriatra Jader Andrade, frequentador do grupo de estudos do Ideac. Será que algum leitor tem as respostas?
(*) Dra. Maria Celia de Abreu é psicóloga, coordenadora do Ideac e autora de vários livros, entre eles, “Velhice uma nova paisagem” .
(Foto Jader Andrade)