Por Jader Andrade (*)
ATO I
Rio em janeiro
1979 – Tinha 17 anos quando ela morreu.
Todo ano eu a esperava ansioso, aflito pelo Natal. Desde a infância, minha tia nos visitava anualmente naquele período de festas. Trazia presentes, carinhos, risadas. Ainda sorrio ao lembrar dos passeios no parque, das fotos que tirávamos com a Kodak Instamatic 133, dos jogos de tabuleiro em que sempre me deixava ganhar. Lembro do seu cheiro de pó de arroz, das unhas grandes pintadas e das roupas coloridas.
Naquele ano o presente foi meu. Ficara muito feliz por minha aprovação no vestibular de Medicina. Ter um sobrinho e afilhado médico era motivo de júbilo.
De sua vida no Rio de Janeiro, eu pouco sabia. Fazia massagens e serviços de manicure. Enchia a boca ao falar que Ana Maria Botafogo, a bailarina do Municipal, era sua cliente. Morava num modesto hotel no Flamengo, e foi da janela de seu quarto, no quinto andar, que caiu.
Minha mãe, sempre desconfiada e temente a Deus, tinha certeza de que ela tinha sido empurrada por alguém. Sua tia, depois que começou com essas coisas de espiritismo, não ficou bem, dizia desaprovando. Talvez fizesse uma associação entre as duas hipóteses. Eu não questionava. Sua vida e de suas três irmãs, que ficaram solteiras e sem filhos, sempre foi assunto restrito. Órfãs de pai e mãe ainda crianças, foram acolhidas em um extinto internato da época, a Escola Orsina da Fonseca, deixando a humilde casa de minha bisavó. O pai delas morrera afogado, trabalhando no mar, contavam que era salva-vidas; e a mãe, falecera dois anos antes por alguma doença grave. Tiveram mais dois irmãos que morreram ainda crianças. Era difícil falar do passado, concluí anos depois. Enquanto foi lúcida, antes de ser tomada pelo Alzheimer, minha mãe não deve ter nunca admitido que minha tia se suicidara.
Dada como indigente, minha tia-madrinha foi levada ao Hospital Miguel Couto, e colocada sobre uma maca de aço, desconfortável e sem um lençol para cobrir. Sobreviveu por poucos dias.
Mamãe partiu sozinha para o Rio, avisada por um funcionário do Hotel onde a irmã morava. Meu pai e uma das tias que morava conosco ainda não estavam aposentados; não podiam se ausentar do trabalho. Nunca soube o que as duas irmãs conseguiram conversar nos dias que antecederam ao óbito, mas sei que uma lutou sem êxito para a transferência da outra para a enfermaria.
Foi no final de uma tarde quente que o ônibus procedente de Belo Horizonte parou na Rodoviária do Rio, onde minha mãe nos esperava. Eu viajava com meu irmão. Não tínhamos ido antes pois precisei fazer a inscrição na Faculdade, o que só poderia ocorrer alguns dias depois que recebemos a notícia.
Pela primeira vez pude ver sofrimento profundo no olhar daquela que me abraçava: ela morreu agora, pegou uma pneumonia.
O Rio, num janeiro que não era para férias, estava bem diferente. Triste. Fomos para um apartamento onde minha mãe tinha alugado um quarto por uns dias; a proprietária era uma conhecida antiga, cujo filho fora colega de escola do meu irmão. Tocamos a campainha e, enquanto aguardávamos que abrissem a porta, minha mãe desfaleceu. Consegui protegê-la com meus braços para não se machucar. Desde então, em momentos tensos, tornou-se comum ela desabar.
Os dias prosseguiram árduos, e o Rio entristeceu mais. O mar e a praia pareciam não pertencer àquela cidade. O centro da cidade, com assuntos de funerária, de cartório e relacionados a outras dificuldades, era a realidade que me surpreendia. Um novo Rio para mim. Foram horas de espera em salas cheias, ao lado de familiares em sofrimento. O nosso choro ia ficando para depois.
Como minha tia foi encontrada na rua, sem documentos, seu registro no hospital que a socorreu foi irregular. Seu corpo morto foi vendido para uma faculdade de medicina, para dissecação. Vi minha mãe, mulher de fibra e fé, brigar e conseguir o direito de levá-lo para nossa cidade e ser sepultado ao lado de uma outra irmã, que foi a primeira delas a falecer. Era seu hábito visitar o túmulo familiar nas datas de aniversários de nascimento e Dia de Finados. No ano seguinte, ao me deparar com cadáveres nas aulas de anatomia geral, lembraria aliviado como nossa história foi modificada pelo esforço materno para que afeto e respeito prevalecessem, honrando seus valores.
Foram cinco dias. Ou mais, não lembro.
O sol começava a despontar e uma Caravan cor de caramelo estacionou em frente ao prédio em Copacabana. Entramos, rumo ao necrotério, onde a urna foi colocada no porta-malas, depois que uma parte do banco de passageiros foi rebaixada. Alternei com meu irmão o lugar ao lado dela no carro, até chegarmos em Minas. Como podem ter fome numa hora dessas, ralhou minha mãe, já na estrada, quando meu irmão pediu biscoitos. Despedi-me da tia querida por várias vezes, engasgado, sem ainda compreender o significado maior de todos aqueles dias.
Disse adeus àquele Rio, sem graça, onde sol, sorvete e praia, então percebia, eram apenas uma face da moeda. E demorei a fazer as pazes com aquela cidade. Os tempos inocentes ficavam para trás. Começava, mesmo antes da primeira aula na Faculdade de Medicina, a aprender sobre a última grande lição da vida: morrer.
(*) Jader Andrade é médico
Lindoooo texto e ao mesmo tempo triste saudades
Obrigado pelo retorno. O texto é triste, mas tem poesia que faz parte do Jader. Abraços
Muito bom querido colega e amigo Jader
Sensível e interessante
Obrigado pelo retorno Sonia. Jader demora para escrever em nosso blog, mas quando escreve arrasa. Abraços
Triste, poetico, mas muita bonito!
Pois é um tema difícil e uma situação contada com maestria Abraços Ézio
Verdade Ézio, abraços
Meu querido amigo, meus sentimentos e como já esperava de você, um texto sem igual sobre o inevitável da vida.
Até no inevitável pode ter poesia não é mesmo? Abraços
Que delicadeza e ao mesmo tempo firmeza ao falar da morte. Um texto qie nos impulsiona a repensar sobre as varias faces da existência. Obrigada por compartilhar
Sempre é bom ler textos que nos trazem reflexões, como esse, abraços
Um texto que provoca reflexões é importante. Obrigado pelo retorno, abraços
Que lindo, Jader.
A poesia é amiga da dor.
Final dos tempos no CSA e começamos a trilhar caminhos diferentes.
Abraço
Os caminhos se cruzam Cristina, amizade dura para sempre. Abraços
Os caminhos mudam, amizades permanecem. Abraços
Texto sensível e muito bem escrito, bem de acordo com o autor.
Exatamente, é um texto muito especial e tocou as pessoas. Abraços
Sim, por isso ele precisa escrever mais e nos presentear com textos como esse. Abraços
Uma mensagem amorosa para lidar com um tema tão delicado. Queria continuar essa prosa poética e te ouvir mais! Obrigada por compartilhar!
Reflete bem o espírito amoroso do Jader, não é Cleide? Abraços
Tão amorosa quanto o Jader, não é? Abraços
Que bela prosa Jader!
Belo modo de revisitar a memória. Afetivo, sensível, atento, poético… Dá até para sentir um certo aroma mineiro.
Um grande abraço!
Parabéns!
Obrigado pelo retorno Maria Lucia. O texto do Jader traz mesmo muitas reflexões e memórias. Abraços
Amigo querido, o texto traz tristeza, mas a leitura é fácil e convida acontinuar. Bom conhecer um pouco mais da sua história, um relato comovente e poético. Fiquei com sabor de quero mais.
Virá um novo ano e certamente também será ótimo. Abraços
Quem pode nos ensinar a morrer?
Ninguém pode, é um trabalho individual e difícil. Abraços
Belo texto. Sensibilidade unica. Só poderia ter sido escrito por você, Dr Jader… gratidão
Obrigado pelo retorno, abraços
Triste! Mas ficou tornou- a linda e bela dr Jader! Saudades!
Sim, uma bela história real de amor e respeito. Abraços
Que texto, meu amigo, que texto. Rico e sensível. Parabéns!
Realmente, esse texto provocou muitas reflexões. Obrigado pelo retorno Guilherme, abraços