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Conheça um universo de informações para um envelhecimento saudável.

Diário de um filho

Há dores das quais não se pode – nem se deve – fugir. Acredita-se que ter sido formado dentro dos conhecidos valores da cultura japonesa; ser psicólogo, portanto, treinado e acostumado a lidar com conflitos e administrar emoções; frequentar um grupo do Ideac durante anos, compartilhando informações e reflexões… são condições que ajudam a acompanhar o envelhecimento de uma pessoa querida. Mesmo com profundos sentimentos de sofrimento e de impotência, percebe-se que não há necessidade de fazer disso um drama ruidoso, ou um pretexto para representar papel de vítima. Com calma, com senso de observação acurado, com lucidez, com profunda aceitação do inevitável, mas revelando nas entrelinhas, apenas para o leitor sensível, a dor dessa fase, Ezio Okamura produziu e nos enviou o texto a seguir.

Minha mãe

Depois que meu pai faleceu e ela passou a morar sem outro familiar, minha mãe fez questão de permanecer na mesma casa onde criara os cinco filhos. Fez questão porque disse gostar do bairro, ser conhecida pelas gentes que passavam pela sua rua e pelos vizinhos.

Começou que ela se engasgava nas refeições.

O trabalho do dentista, implicando em muitas idas ao consultório dele, amenizou a situação. Ela também foi sempre obediente quanto aos exercícios prescritos pela fonoaudióloga, incluindo as tarefas que devia cumprir em casa. Mas não houve solução completa.

Feitos testes de deglutição, recomendaram comidas macias ou pastosas. Com o tempo, a maioria do que podia lhe ser servido nas refeições passou a ser pastosa.

Certa feita não recordou onde havia deixado os óculos.

De outra vez, achou que a empregada havia levado sua aliança, que usava mesmo após a morte de meu pai. Comprei outra, mas foi em vão; fazia questão da original. Sossegou quando foi finalmente encontrada.

Tornou-se frequente perguntar por que o marido não retornara ainda da loja (de que era o proprietário), pois já era a hora do jantar.

Nas saídas para as consultas com profissionais da saúde, adorava lanchar fora, coisa que, de fato, não fora hábito do meu pai. Gostava de ir às consultas médicas toda arrumada, roupas combinando entre si e o rosto sempre lavado.

Mais adiante, começou a se recusar ir às consultas médicas, alegando indisposição ou estar com dor de cabeça. Tive que brigar com ela, algumas vezes.

Queria passar cada vez mais tempo na cama, dizendo estar com dor de cabeça. Em outras ocasiões, dizia que naquele dia não precisava tomar banho…

Aos poucos foi perdendo o interesse pelas atividades e tarefas de rotina: arrumar as flores em buquê para o altar doméstico, folhear revistas, ir ao supermercado onde antes fazia questão de escolher frutas, verduras e outros itens.

Não perguntava mais por uma das filhas, que tinha morrido logo depois do meu pai. E já não dizia não entender por que o marido falecera, se era tão forte; não perguntava mais o que o havia levado à morte.

Eu imagino que deve ter sentido demais a perda do café da tarde, um ritual que adorava, quando passava um bom tempo conversando, enquanto ficava repetindo e repetindo um tantinho de café com leite por vez, no fundo da xícara. Foi preciso substituir não só esses lanches da tarde, como todas as refeições – pastosas, lembram? – por dietas via sonda nasogástrica…

Mais recentemente a sonda vai direto ao estômago, processo que tem outras consequências. Por exemplo, minha mãe precisa usar luvas de contenção para não mexer na sonda, mesmo que involuntariamente.

Não consegue mais nomear todos os cinco irmãos, que moram no Japão. Confunde, de vez em quando, o nome de um dos filhos, achando que se trata de um sobrinho. Recorre aos que a acompanham quando não se lembra de algo.

Não há mais manifestação de vontade própria, exceto para indicar um incômodo, uma dor… ou algum contentamento.

Tudo tem sido feito para resolver ou, quando impossível, amenizar o sofrimento dela. Mas é triste ver a progressiva e irreversível dependência (em todos os sentidos) e a perda de memória, inclusive as mais antigas.

‘Shikata ga nai, nee… ’ (em tradução livre, do japonês: ‘não há outro jeito do que fazer, não é…’).

Este modo de encarar a sequência de tais acontecimentos, pode parecer à cultura ocidental, um certo conformismo diante das fatalidades inexoráveis… Mas o que fazer, não é mesmo?

foto: Jader Andrade

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