Paixão

José Santana Filho (*)

Eu tive um caso de amor com minha mãe. Com direito à calmaria e às turbulências próprias dos casos de amor. Nos momentos de calmaria me sentia blindado de quaisquer tempestades, tal sua capacidade de pacificar os ventos. Entre as turbulências, a do avião no qual voei três mil quilômetros para me afastar de suas asas, garras generosas, bélicas, luzidias, quarenta anos atrás.

De longe, entrincheirados num primeiro momento, conquistamos a liberdade de retomar nossa história, agora favorecidos pela distância, protegidos do desgaste cotidiano, o campo livre para as idealizações. Chamava-se Ceres, “deusa da fertilidade”, costumava lembrar, enquanto justificava quem sabe um excesso na quantidade de feijão na panela, mais tarde no prato do guarda-noturno, seu Celso, rápido em enfiar o apito no bolso e sentar à calçada com o prato no colo, às vistas dela, ocupada em vê-lo devorar o prato cheio.

Cheia de excessos, minha mãe. “Até hoje não encontrei nada que me dominasse, a não ser o amor por meus filhos”, dizia, vaidosa de sua independência a qualquer hábito indesejável. “Tenho três filhos únicos”, retrucava, caso alguém aludisse ao amor incomparável pelo filho único. “O tempo dá e ele mesmo se encarrega de tirar”, ao se olhar no espelho, velha, deslizando a ponta dos dedos pelo rosto imperturbável da beleza.

É quando lembro dos cheiros de infância, o seu travesseiro exalando o aroma dos cremes e discretos sândalos que a acompanharam por toda vida, imunes à sua morte, tudo dentro de mim.

Ainda ontem sonhei com ela de frente para o espelho dirigindo-se a mim sem se voltar, deslizando na boca o batom clarinho, provocando um jeito próprio de emitir as palavras, curiosa em saber o que eu escreveria dessa vez para celebrar o nosso encontro, ambos ungidos e perdoados de tantos desencontros entre nós dois.

(*) José Santana Filho é escritor, médico e integrante do Grupo de Reflexões do Ideac