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O tricô da Zilda

(*) Por Suely Tonarque

 A alegria era explosiva quando Marina foi para o hospital, ganhar o filho dela e de Artur. Era o primeiro neto das duas famílias Torres e Menelau, em quem depositavam expectativas de bens materiais e poder.

O bebê nasceu forte e sadio, encantava a todos com seus olhos pretos e grandes, como se quisesse rapidamente conhecer o mapa do mundo. Um mês após ter nascido, foi batizado, conforme os costumes da época:  sem o batismo era um pagão, e logo a avó paterna se convidou a ser madrinha pois, tinha guardado as roupas de batismo de Artur para um filho/ neto que poderia dar continuidade às novas gerações da família.

O traje era uma espécie de camisola branca feita de tricô, com uma lã macia e brilhante que, mesmo com tantos anos passados, parecia ter sido realizado na noite anterior.  Completava o ambiente sagrado da Igreja.

O tricô está presente em muitas das nossas histórias. Vamos fazer tricô? Às vezes é uma conversa de algum acontecimento e falamos: vamos tricotar

A origem do tricô é desconhecida, mas segundo algumas narrativas antigas parece que nasceu no Oriente Médio, e depois surge em rotas comerciais de outras regiões. Entre os séculos  XII e XIV, aparecem os pares de meias  egípcias de fibra de algodão, e este é considerado o item mais antigo de tricô.

A história da Grécia nos conta que a bela Penélope, esperou vinte anos por seu amante Ulisses, enquanto ele lutava na guerra de Troia. Penélope, enquanto esperava, tece a solidão, e com muita paciência borda, junta os fios, dos desencontros, da recombinação da trama, que está “escrita” na sua memória. E vai tecendo o dia todo, uma maneira que encontrou para proteger-se e não aceitar a proposta do seu pai para casar-se novamente.

Uma serva de Penélope descobre o que ela fazia e assim ela precisou terminar a colcha. Penélope propôs ao pai que se casaria com o homem que conseguisse atirar uma flecha igual Ulisses fazia. Ninguém consegue, e neste momento Ulisses, disfarçado de mendigo, mata todos os pretendentes e volta para Penélope.

Como mito, Penélope é considerada uma mulher repleta de inteligência ao “ inventar”  a sua fiação, uma forma de proteger-se, uma mulher ativa , atuante e coberta de sabedoria.

Quando propõe de novo que o pretendente atirasse uma flecha igual a Ulisses, duplamente usa sua inteligência, apresentando sua parte de salvar os seus desejos (desejo de Ulisses).

Dona Phina (Josephina Curriola, de Curitiba, com 92 anos) aproveita o seu tempo fazendo cachecóis para pessoas em situação de rua. Segundo ela, já produziu mil peças que foram doadas. Conta que aprendeu os segredos do ponto avesso e do ponto direito do tricô. Quando adolescente, para escapar dos serviços domésticos, tricotava (e me pergunta: – isto aqui aparece, né?). E o serviço da casa não aparece nunca, você faz e desmancha, você mesma faz e você mesma desmancha tudo, com risadas…

Testemunho este relato acima, porque dois motivos me encantaram: o fato de doar seu trabalho aos menos favorecidos e pelo ato de fazer e desmanchar sem nenhuma regra, apenas ela e a liberdade de sua criação.

Na minha caixa de memórias, vou buscar e encontrar a minha mãe Zilda Pires da Silveira Tornaque, que me ensinou a fazer tricô. Lembro da primeira peça, um cachecol  ponto de arroz, um tricô e um meia que constituíam formas diferentes de colocar os pontos na agulha. Com sete anos, achava muito difícil, mas com determinação de minha mãe, terminei o meu primeiro cachecol de cor azul. Várias vezes foi necessário desmanchar e fazer de novo, as vezes pulava um ponto ou a lã ficava folgada.

Tive de aprender a me compenetrar e ficar atenta com o manuseio das agulhas, e guardar no local combinado quando terminava a aula com a mãe Zilda. Quando comecei a trabalhar, mãe Zilda fez muitas blusas de tricô, de várias cores: amarelas, brancas, vermelhas, pretas. Infinitas. Saudades deste tempo dos meus tricôs coloridos, e principalmente da minha mãe me presenteando com amorosidade seus tricôs, cada peça feita com arte, nas escolhas e combinações das cores, no acabamento, inventices dos modelos e as qualidades das lãs.

A minha sacola de tricôs era repleta de lãs de todas as cores, e em um pote comprido de bambu várias agulhas, e nestas, junto à textura das lãs, nasciam os meus pulôveres, das minhas irmãs e dos meus irmãos.

Como aprendi a fazer tricô, também tive o desejo de ensinar esta arte milenar, terapêutica, divertida e tranquila, pois trabalhar com as mãos e ficar atenta é um desafio à memória e à presentificação do que se faz.

No ano de 1990, professora no Colégio Galileu Galilei, resolvi em uma das nossas aulas de artes, todas as terças feiras, experimentar o desafio de fazer tricô com os meus alunos de da primeira série ( 6/7 anos de idade), no mês de junho, início do inverno.

Perguntei aos meus alunos:- vamos tricotar um cachecol? Desafio aceito. À medida que aceitaram, começaram…cada um com suas agulhas e novelos de lã. Quando escrevia na lousa a lição de casa, no último item pedia para tricotarem três dedos…e assim conseguimos terminar o cachecol. Cores variadas como vermelho, azul, amarelo, verde, branco, preto, enfim, todos alunos se empenharam e se encantaram. Saíram de férias, e no retorno às aulas, em agosto, conseguimos fazer uma redação coletiva sobre esse exercício de tricotar.

Com esse desafio pude perceber que a letra escrita foi se aprimorando e tornando possível compreender o que os alunos escreviam. Vagamente me lembro de que fui questionada por alguns pais, por que tricô, perguntavam eles? -Sim, faz parte do aprendizado curricular, eu dizia com delicadeza à coordenadora da Escola.

Minha mãe gostava de fazer atividades coletivas com os filhos, sempre envolvidas de muito amor e que ficaram na memória de cada um de nós. Fazer tricôs juntos era apenas uma de tantas outras atividades. Mas tenho certeza que era uma das mais amorosas.

Todos nós sabemos a diferença entre ganhar um suéter feito por máquinas e ganhar um, mesmo que feito da mesma lã, feito pela mão humana.  Eu diria que o amor que está nas mãos que tricotam chega até nós e nos esquenta muito mais, como se o entrelaçamento das linhas de lã conectasse quem recebe e quem dá o presente.

(*) Suely Tonarque é gerontóloga, psicóloga e especialista em moda do envelhecer. Integra o Grupo de Reflexões do Ideac.

 

 

 

 

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