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CHAMPANHE NO CAFÉ DA MANHÃ

CHAMPANHE NO CAFÉ DA MANHÃ

CHAMPANHE NO CAFÉ DA MANHÃ

Vivi anos abaixo da linha da ignorância, tentando entrever o que havia acima dela. Devorava as poucas revistas que chegavam em casa, economizava pra comprar o Jornal da Tarde, lia tudo o que havia na pequena biblioteca da escola. Desconfiava que na São Paulo culta e civilizada as pessoas viajavam, falavam sempre de coisas interessantes e as mulheres eram livres e liberadas. Tudo muito longe das minhas possibilidades.

Contra ventos e marés me formei e comecei gastar o que ganhava prospectando o que me fora negado até então. Comprei um fusca em quarenta e oito prestações, viajei nas minhas primeiras férias remuneradas até Vitória pela Rio-Santos, então recentemente inaugurada, comecei a frequentar teatro e cinema mais ou menos regularmente, descobri o que era jazz e um dia soube que Dick Farney, aquele homem com voz sexy e afinação impecável que ouvi tantas vezes no rádio lá de casa, estava de volta ao Brasil (nem sabia que ele havia partido) e se apresentava no Chez Regine (que eu não sabia muito bem do que se tratava). Mas, ver o homem em carne e osso, era algo que não perderia nunca. Juntei três amigas no meu fusca e lá fomos nós. Duas desceram em frente à boate para providenciar os ingressos, eu e a quarta amiga fomos estacionar meia quadra adiante. Quando desci do carro notei que as que ficaram para providenciar os ingressos avançavam em minha direção. Nada feito. Mulheres desacompanhadas não podiam entrar. Fiquei furiosa. Fui à bilheteria, discuti,
argumentei, de nada adiantou.

Passei o dia seguinte à beira da depressão. Então, mulher só valia pelo homem que tivesse pendurado ao lado? Toda mulher que se apresentasse sozinha em uma boate era para arranjar um programa? E se fosse, qual o problema? O mundo culto e civilizado era tão careta quanto minha família inculta e periférica.

Ao retornar para casa, entrei em um engarrafamento monstro na avenida Brasil. Ouvia Um piano ao cair da tarde da radio Eldorado pra tentar melhorar o astral daquele dia horroroso, quando notei um carro ao lado procurando o tempo todo emparelhar com o meu, o motorista visivelmente interessado. Apesar das minhas incursões ao mundo  civilizado, ainda não tinha posto em prática minhas convicções sobre amor livre e coisas do gênero. Vinte anos de repressão protestante maciça ainda precisavam de uns anos mais para me fazer uma figura ousada, se é que algum dia fui. Mas aquele acabou sendo meu primeiro treino. Uma luz acendeu acima da minha cabeça. Ali estava a chance para conseguir adentrar a porta daquela espelunca. Era preciso um homem? Pois eu ia arranjar um. Comecei treinar uns olhares lânguidos, que afinal deram resultado. Ele me pediu o telefone, mas não dei. Pedi o dele. Não queria correr o risco dele não entrar em contato. No dia seguinte liguei para o moço e sugeri ouvir Dick Farney no Chez Regine. Ele não devia saber o que era nem uma coisa nem outra, mas
topou de imediato. Adverti que ia com uma amiga, e não três, claro. Ele disse que
levaria um amigo. Ótimo. E assim arranjei um homem objeto para conseguir o que queria. Quando nos encontramos todos na frente da boate notei que ficou meio decepcionado com a contagem de quatro a dois, mas não reclamou. Foi cavalheiro, no entanto era um primário, do tipo que tentava acompanhar aquele músico impecável e sofisticado batendo o ritmo com uma colher no copo de uísque, coisa que tentei impedir várias vezes durante o show.

Terminamos a noite no programa paulistano anos setenta, que era tomar café no
aeroporto e nunca mais o vi.

Anos depois mudei para a Europa e sempre que voltava ao Brasil de férias visitava D, que conheci na faculdade. Uma mulher linda, cuidada, bronzeada o ano inteiro, de cabelos louros sempre impecáveis. Foi casada vários anos com um homem de televisão e depois da separação decidiu voltar a estudar, por isso entrou tardiamente na faculdade. Nessa ocasião eu tinha dezoito anos e ela trinta e seis. Não aparentava mais que vinte e cinco. Eu, sempre ligada em gente mais velha, fiquei encantada: quando crescesse queria ser igual a ela. Mantivemo-nos sempre em contato, mesmo depois de minha mudança do Brasil. Assim, em uma das vezes que almocei em sua casa próximo à represa de Guarapiranga, para onde mudou depois de casar novamente, me lembrei da história de Dick Farney da qual, não sei por que, ela nunca soubera. Depois do almoço me convidou para tomar café em uma confeitaria próxima, e me levou a uma casa não muito longe. Quando entramos, me deparei nada mais nada menos do que com Dick Farney. Era amigo dos tempos do primeiro casamento e, por acaso seu vizinho naquele momento. Quase desmaiei. Ela havia telefonado para ele sem que eu ouvisse e disse que precisava apresentar uma fã com uma história que ele ia gostar de
ouvir. E assim foi. Não me lembro de muitos detalhes. Era uma casa clara, com moveis que classifiquei como colonial americano, na parede quadros com temática velho oeste e um piano de meia cauda frente a uma bay window com vista para a represa. Dia inesquecível.

Todo ano no meu aniversário D me ligava sem fazer a conversão de horário e sempre me acordava por volta das duas horas da manhã. No ano seguinte não foi diferente. Ainda meio adormecida, peguei o telefone, já sabendo de quem se tratava e, do outro lado da linha, a ouvi cantando parabéns a você. Mas aos poucos achei uma voz diferente. Não era ela. Quando terminou, ainda sonolenta agradeci e perguntei quem era. “ É Dick, minha querida”. Só então acordei de susto e assim fiquei vinte e quatro horas. “Dick! Agora que acordei canta de novo pra eu sentir o quanto minha vida melhorou, querido”. E ele cantou.

Quando desliguei, abri uma boa garrafa e amanheci olhando o fogo na lareira, ouvindo Dick Farney no aparelho de som e bebendo champanhe até o café da manhã.

Texto de: Angela Santos

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Maria Celia de Abreu
Maria Celia de Abreu
1 year ago

A crônica da fisioterapeuta Ângela Santos fica ainda mais saborosa se o leitor dispor de alguma informação adicional sobre a personagem que ela discretamente chama de D… e que vamos revelar aqui quem era, penso que sem transgredir nenhum princípio ético.
Dirce Barracos de Vasconcelos fez parte do primeiro Grupo de Profissionais para Estudos e Reflexões sobre o Envelhecimento do Ideac, em 2001. Foi ela quem introduziu no Ideac os cursos voltados para o fortalecimento do assoalho pélvico, quando ninguém ainda falava sobre esse assunto, e de ginástica facial.
Dirce, ou Dy, ou Dy Loira, sempre esteve ligada a movimentos de vanguarda. Formou-se na primeira turma de Fisioterapia da USP. Especializou-se em atender crianças com paralisia cerebral. Aprendeu RPG ( Reeducação Postural Global) e Harmonização do Corpo Sensível nas primeiras turmas formadas no Brasil, diretamente com seus respectivos fundadores, Philipe Souchard e Jean Paul Résseguier.
Além da excelência na profissão, Dy Loira tinha a capacidade de agregar, acalmar, acolher, ouvir, atender. Sempre com humor e glamourosa. Como disse o jovem padre na missa de sétimo dia: ninguém tinha um sorriso mais bonito do que ela!
Ângela Santos nos dá um flash desse dom da Dy.

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