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Ovo

Por Santana Filho (*)

No apartamento desato a gravata, descanso a pasta de couro, dispo o terno, alinho o bigode e deslizo o batom vermelho pela boca oval diante do espelho. Pincelo o ovo, chocando-o aos poucos no circuito da boca, e só quando o tenho sanguíneo e ligeiro é que cuspo a palavra.

Aí me escrevo.

É a mim que escrevo, mesmo quando não me refiro a esse homem que de frente para o espelho movimenta os lábios um contra o outro, distribuindo o batom por toda a boca, agora retirando com a ponta do dedo o excesso acumulado no canto esquerdo, os dentes embranquecendo enquanto se avermelham os lábios – necessito das palavras na ponta dos dedos fertilizando-se na cópula com o teclado. Em sossego, executo a operação de transfundir-me em mim depois do expediente no escritório de arquitetura.

Mas há o desassossego. Que acontece entre a garagem do prédio, batida a porta do carro, e o momento em que fecho a porta do elevador no hall do apartamento. Desassossego proporcional às companhias no elevador, a cobertura a vinte e oito andares do chão – os humanos nunca são as melhores companhias com quem dividir esse percurso. Daí as manobras para mantê-lo dentro do terno, o desassossego, quando acompanhado por um deles, os vertebrados.

Adequadamente trajado, assim em pelo, sento-me para escrever e usufruir o silêncio dos trezentos e cinquenta metros quadrados de área útil a cento e vinte metros de altura. O espelho veste a parede à minha frente. Por intermédio dele constato, na parede lateral direita, a presença de Dominique, a lagartixa ocupada em dividir o apartamento comigo. Sorrio, é o nosso costume, aguardando o cumprimento pendular e elétrico, mas nada acontece, Dominique não se moveu de onde está.

Permito a ela o consentimento do cansaço físico e abro o notebook.

Não consigo escrever sequer uma frase inteira incomodado com a imobilidade de Dominique, assim me levanto e vou ao seu encontro.

Não é com Dominique que me deparo, mas um desses animaizinhos do tipo que apenas a miopia avançada justificaria confundir com ela. Acontece que não sou míope e me encontro no auge do vigor físico – a impostora foge em disparada, tão logo me vê.

Imperdoável não identificar essa falsa Dominique a menos de seis metros de mim, as duas só têm em comum a mesma existência oblíqua, marota, vertical. A constatação me obriga a concluir: ensimesmei-me na casca, me transformando neste umbigo submerso em cálculos durante o dia, batendo dedos no teclado do computador à noite, justificando, em simulacro de arte, o desinteresse por tudo o que extrapola o meu corpo.

Uma avalanche de sangue irrompendo em minhas veias ameaça desobstruir os tubos de concreto, eu sou um quase organismo, quase um, e a ausência de Dominique ocupa todos os espaços, como se em vez deste pequeno animal cristalino eu me relacionasse com um lagarto exuberante, do tipo esplendoroso, seguro de sua luz ao rastejar. Refaço o cotidiano doméstico dos últimos dias na tentativa de encontrar alguma explicação para o seu sumiço, e afinal eu amo.

Então o grito: eu amo. É grito, mas ainda sem exclamação. Vasculho cada milímetro de parede, tropeçando em fragmentos do rabo deixados por ela na fuga. Não alcanço nada capaz de justificar sua atitude assombrada – nem com as digitais nem com a memória – Dominique deve ter usado essa artimanha para bolinar a rotina, chamar a atenção sobre si, me obrigando a reconhecer o marasmo instalado entre nós dois, Dominique, linda Dominique, me enviando sinais.

Olho o nosso apartamento. As suas dimensões, mais do que os fragmentos de rabo espalhados pela parede, confirmam: a paixão não necessita de grandes espaços; são as entressafras que exigem latifúndios. Dominique não resistiu à entressafra, e na retirada barulhenta de todas as fêmeas ao se retirar, me acusa pela esterilidade, o excesso de metros quadrados entre nós, abaixo de nós, acima de nós, e fora.

Volto ao espelho e refaço o batom no circuito da boca, porém, em vez de me dirigir ao teclado para cuspir as palavras, abro o baú de madeira no qual enfio panos e utensílios, e vou limitando com folhas de papelão, placas de gesso, biombos de seda e estruturas de ferro o espaço, trazendo os limites do espaço para junto de mim, enrodilhando-me nele, reduzindo-o ao ponto onde só me caiba eu de frente para a parede branca, esculpindo em torno do vazio até me excluir por completo. Apenas quando me sinto compacto e permissivo é que escrevo a carvão neste pedacinho de parede que sobrou, por onde ela costumava escorregar ao meu encontro:

Dominique, volte! Eu também desejo.

Desejo – como todo animal de sangue quente.

E começo a perceber, ainda que distante, ainda que estrangeiro, o aporte sanguíneo e a alma se insinuando nos meus orifícios a partir da cloaca, até este dia reles canal metálico de esvaziamentos. Estou intumescido de mim, me dilatando, me distendendo, ganhando corpo.

A ruptura será imediata.

O ovo certamente vai expelir um novo animal.

À altura de Dominique desta vez.

 

(*) Santana Filho é médico, psicoterapeuta e escritor, integrante do Grupo de Reflexões do Ideac